Entrevista com a Professora Marcia Moraes

Marcia Moraes é pós-doutora em Psicologia Social pela Lancaster University (2009), doutora em Psicologia pela PUC/SP. Professora Associada do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense, onde atua na graduação e pós-graduação em Psicologia. Suas pesquisas concentram-se no campo dos estudos de ciência, tecnologia e sociedade (CTS) em suas interfaces com a psicologia e com o campo das pesquisas na área da deficiência. Bolsista de produtividade do CNPq.
E-mail: mmoraes@vm.uff.br

Márcia Moraes foi entrevistada pela equipe do GIPS, representada por Cíntia Carvalho, Danilo Godinho e Solange Jobim, em 12 de setembro de 2011. Clique aqui para ver parte da entrevista em vídeo

GIPS: Em que linha teórica você trabalha atualmente?

MÁRCIA: A base teórica da minha pesquisa é um conjunto de autores, eu me interesso por vários, mas que me permitam um certo modo de fazer pesquisa, um certo modo de lidar com a pesquisa. Que é, como a gente vem discutindo, de pensar a prática de pesquisa como uma prática situada, localizada e que se faz com o outro. Eu tenho discutido, ultimamente, o que é que é esse COM, esse COM inclui o quê, inclui o pesquisador, o outro da pesquisa, enfim, o objeto, a cena, inclui o quê? Mas esse é um fio que me interessa pesquisar, mas que eu vou pesquisando por vários autores, pelo Bruno Latour, Annemarie Mol, John Law, Vinciane Despret... Por conta dos trabalhos aqui na PUC, com a Solange, incluí outras leituras, inclui a Jeanne Marie Gagnebin. Me interesso muito pelo Walter Benjamin, eu li pouco, mas me interesso muitíssimo. Eu aprendi com vocês a importância lá, do trabalho reflexivo do Coutinho, tenho o livro. Então eu vou ancorando leituras diversas que me permitam investigar este fio condutor que é o que eu penso na minha prática de pesquisa. Então, eu poderia dizer talvez que o grosso, é o CTS - Ciência, Tecnologia e Sociedade. Estou nesse campo aí. Mas procuro olhar para outras coisas.

GIPS: Por que estes autores? 

MÁRCIA: É que essa história é longa... É porque assim, eu comecei a me aproximar destes autores, do Bruno Latour, quando eu fui fazer o Doutorado. Eu fui fazer o Doutorado em noventa e quatro, na PUC/SP, e era uma tese teórica, em que eu queria discutir uma epistemologia da Psicologia que fosse mais interessante. Eu vinha de uma formação em Psicologia em que tinha lido Canguilhem, tinha lido Foucault, e era muito crítica à Psicologia em si, muito combativa. E eu queria, afinal, estou nesta área da Psicologia, será que não existe uma Psicologia um pouco mais interessante, não só da norma, assim, desse viés da normalização. Eu queria pensar uma outra Psicologia. Eu fui movida no Doutorado por isso. Naquele momento de uma maneira muito ampla, no início do Doutorado, acho que eu tinha lido só o “Jamais fomos modernos”, do Latour e nada mais. Era essa a minha inquietação. E foi no percurso do Doutorado, que eu fui começando a me interessar mais, especificamente pelo Bruno Latour e por autores vizinhos, Michel Serres. Isso se constituiu para mim no Doutorado, mas foi um trabalho teórico. Então eu encontrei nestes autores e neste campo de Estudos CTS e na Teoria Ator-Rede, material de início para eu pensar um modo de conhecer a Psicologia que fosse mais interessante. A minha ideia nesse momento era trazer as discussões que o Latour fazia no campo da ciência, da ciência em geral, da ciência natural, na etnografia de laboratório que ele fez, trazer aquilo pra pensar a Psicologia. Mas foi um trabalho teórico, um trabalho que discutiu muito a noção de rede, mas um trabalho teórico, que já tinha ali esta inquietação. E aí no Doutorado teve um negócio que foi muito legal, assim, que foi uma descoberta, eu gostei de ter descoberto o Canguilhem, que eu não conhecia e fui conhecer no Doutorado. Foi muito interessante. Eu tinha lido o texto “O que é a Psicologia”, que é um texto que é crítico aos clássicos modelos da Psicologia, ele é super crítico. Eu fui lendo outros trabalhos do Canguilhem, vários outros e fui pegando uma distinção lá que ele faz, que ele fala que o conhecimento científico para se instalar, ele precisa que anteriormente, que a razão precisa se aventurar por diferentes domínios. Tem uma parte que ele diz assim, uma aventura da razão que compõe, que constitui o pensamento científico. Parte daquilo que vai se estabelecer como conhecimento válido. Então eu explorei muito essa ideia do Canguilhem. A problematização que ele faz entre o senso comum, a ideologia, que está fora da razão, e o que é a racionalidade. Não é uma distinção tão dura, como muitas vezes é apresentada. Como os epistemólogos falam de um corte, de uma ideia de separação,  um corte, como se ideologia fosse uma coisa e o pensamento racional é outra. O Canguilhem, ele coloca uns matizes aí, nessa discussão, que me pareceram muito interessantes. Eu não tinha essa leitura do Canguilhem, antes de chegar no Doutorado. E aí fui retraçar no Deleuze, no “Diferença e Repetição”, que ele coloca lá numa nota de rodapé, uma observação sobre o Canguilhem dizendo isso. Que o Canguilhem é um epistemólogo, naquela tradição da epistemologia francesa, que lançava mão da ideia de separação entre ciência e senso comum, mas que era um filósofo que ali fazia a diferença, que ele tinha se atentado para a importância dessa ideia de diferença, de devir, de variação. E aí eu fui atrás disso na obra do Canguilhem e foi muito bacana. Que de alguma maneira aproximado, como eu fiz no Doutorado, eu aproximei o Canguilhem das discussões do Latour, à despeito do próprio Latour, porque nos “Jamais fomos modernos”, ele critica o Canguilhem, né? Cai de pau no Canguilhem, porque diz isso, que o Canguilhem propõe uma epistemologia com essa ideia de separação e que ele, o Latour vem exatamente problematizar essa separação, mostrar como ela se constitui. E aí eu fui retraçar o Canguilhem, essa história, e vi que não é tão fácil de enquadrar esse autor neste cenário, como um epistemólogo que desconsidera o senso comum. 

GIPS: Então nesse momento você faz uma crítica ao Bruno Latour?

MÁRCIA: Ah, é, eu não concordei com ele não. Digo lá na tese que a leitura que ele faz do Canguilhem, não coincide com a leitura que eu acabei fazendo. Eu gostei de ter, para mim foi uma coisa bacana, eu gostei de ter dado conta assim, de ter visto um matiz num autor que pela leitura ali do Latour, que é um autor que quase não fazia muita distinção ente o Canguilhem, o Bachelard, eram todos da filosofia do corte, da separação, e que ele, o Latour, estava fazendo uma coisa inteiramente original, problematizando essas fronteiras. E aí eu digo que não, que o Canguilhem também problematizava, ainda que ele falasse que há uma distinção entre ciência e senso comum, mas não é tão simples assim, porque ele diz que o conhecimento científico só pode se constituir a partir de uma certa aventura da razão. E aí fui retomar o outro trabalho dele que, é até mito, que chama “O conhecimento da vida”, e que tive a delícia, a graça de reler agora a dois meses atrás e achar, fantástico assim, que é que ele conecta, ele liga as teses dele sobre o que é o conhecer, com as teses dele sobre o que é o vivo. Então ele vai ter toda uma discussão assim, no campo da biologia, para problematizar a ideia de vida como um mecanismo. E dizer que o mecanicismo não tem nada a ver com a vida. Que a vida é variação, a vida é diferença, a vida que é errância. Que aí retoma o vitalismo como uma filosofia necessária à vida. E lá pelas tantas ele fala nesse livro, mas, se o homem é um organismo vivo, e dentre estes vivos um organismo que pensa, como se pode entender que o pensamento está desconectado da vida? Há que existir um pensamento na dimensão de errância, de variação, de deriva. E é uma discussão belíssima que ele faz nesse livro. E eu retomei isso no Doutorado, e retomei, reli agora recentemente, há dois meses atrás, e fiquei surpresa de fazer outras conexões que naquela época não fiz. Por exemplo, com o trabalho da Annemarie Mol, que é praticamente em cima dessa ideia do Canguilhem, de fazer pesquisa. Dessa ideia do que é que é o vivo do Canguilhem. É bem bacana...

GIPS: E quais são as implicações do estudo destes autores para pensar metodologia, para atuar no campo da pesquisa em ciências humanas?

Márcia: Eu vou falar da minha pesquisa. Como é que eu vejo isso na minha pesquisa. Eu acho que esses autores me implicam. Constitui em mim um corpo de pesquisadora. Me fazem estar no campo de uma certa maneira e não de outra. Ter atenção no campo para uma coisa e não para outra. E aí eu aprendo muito com esses autores. Por exemplo, de levar em conta o outro. De se interessar pelo que interessa ao outro, de tomar a sério e de seguir as pistas que, do que no campo equivoca, do que no campo cria lá a dimensão de um equívoco, ou o que a Vinciane Despret chama de um mal-entendido promissor, seguir as pistas desses mal entendidos, porque ali se anuncia a possibilidade de que alguma coisa possa aparecer. Então eu acho que esses autores me constituem para estar no campo de uma certa maneira e não de outra. E para orientar os alunos que trabalham comigo de um modo e não de outro. Entende? Eu não faria isso sem esses autores que eu leio. Eu faço uma pesquisa no campo da deficiência visual já há algum tempo, e essa pesquisa ela foi se modificando com o tempo. Atualmente o trabalho de campo é feito em três oficinas. Duas oficinas de experimentação corporal, com pessoas com deficiência visual, adultos que, ou perderam a visão, ou estão em vias de perder a visão, e estão fazendo uma atividade lá no Benjamin Constant que é uma atividade de reabilitação. Eles estão no Benjamin Constant porque vão aprender Braille, vão aprender usar o computador. E aí para esse grupo de pessoas eu faço a oficina de corpo, em parceria com a Faculdade Angel Vianna, uma faculdade de dança. Eu tenho em minha equipe umas pessoas que são da Angel e que me ajudam a pensar o que é esse corpo, o que são as atividades de experimentação corporal... Sempre têm pessoas da Angel comigo. E as minhas alunas de Psicologia acabam fazendo formação na Angel, as minhas alunas estão sempre fazendo a formação lá. Têm essas duas oficinas e tem outra que é com os familiares, os acompanhantes de pessoas com deficiência visual. E aí a gente chamou de uma roda de conversa, disparada sempre por pequenos trechos, poesias, pequenos trechos de música, que disparam uma conversa, que tem sido, nos últimos tempos, na direção de discutir o que é acompanhar e ser acompanhado, o que é guiar e ser guiado, quando se ajuda alguém, quando não se ajuda. Quando se deixa, solta lá a pessoa com deficiência para que ela fique sozinha, quando não. Nesses três campos que eu estou trabalhando.
Essa relação com essas pessoas da Angel, com a estratégia de corpo que a Angel criou é muito interessante, porque as pessoas que vêm, são geralmente pessoas da pós-graduação. Já tive graduandos também. Aliás, eu tenho vínculo com a Angel e com a Faculdade de Dança da UFRJ. Tem uma graduanda em dança da UFRJ que é minha bolsista também, de iniciação científica e, é muito interessante porque de um lado, eles vêm com uma experiência enorme na prática com o trabalho corporal que é fundamental para o trabalho que a gente desenvolve. As questões lá são muito práticas, por exemplo, a pessoa que perde a visão tem uma questão que é fundamental e que pode ser extremamente problemática que é poder se orientar no espaço pelo som. A gente vai planejando a oficina sempre coladinha com as questões que aparecem no encontro. O encontro nos coloca lá uma questão que leva para o outro. De uma semana para a outra a gente planeja o que vai ser no encontro seguinte. Então, se isso for uma questão, as pessoas que trazem essa bagagem de ter essa experiência com o corpo, eles têm lá uma série de discussões, de como é que a gente pode botar isso em cena, como é que a gente pode botar isso para o corpo, o que é que a gente trabalha primeiro para a pessoa ter consciência da onde é que vem o som... E eu tenho uma entrada, que é do ponto de vista da pesquisa que, por exemplo, a pessoa da Angel diz: “Isso me perturba aqui, por que é que estão tão desconcentrados? Eu faço o trabalho e eles ficam falando?” Aí eu falo, não, mas espera aí, eles são cegos. E se eles não falam, eles não compartilham um com o outro o que é que eles estão vivendo. Então assim, vamos deixar essa fala acontecer um pouco durante essa oficina aí, entendendo que é uma fala que está sendo suscitada por este trabalho de corpo e que ela permite que alguma partilha possa ocorrer. Então tem aí um jogo de uma sintonia, que eles vão me trazendo essa experiência de corpo que tem lá um caminho a ser percorrido e eu vou entrando com a discussão da pesquisa, sabe? E aí é uma coisa que eu acho que é, como você está falando, é própria desse trabalho. Não é nem a aplicação do método, como você disse, que é a discussão da Angel na minha pesquisa, nem uma aplicação dos estudos CTS, nem uma coisa e nem outra, entendeu? E agora estou com um projeto para o próximo ano, eu queria botar uma pessoa da Antropologia. Eu preciso de um antropólogo lá. Eu queria aprender um pouco com eles, porque como eu disse, o foco da pesquisa foi mudando, e agora a gente está se dando conta, um pouco pela inspiração dos estudos CTS, que as fronteiras entre eficiência e deficiência, de fato elas são móveis, vão se modificando. Então a gente está um pouco indo atrás de como é que essas fronteiras são construídas, como é que elas são feitas, como é que elas são transformadas. E me deu vontade de ter um antropólogo na pesquisa, porque com essa história do fechamento do Benjamin Constant, essa discussão do que é ser deficiente e o que é ser eficiente, que tipo de ação é necessário que com essas pessoas se tenha, essa discussão ficou quente. E eu tinha vontade de ter um antropólogo que me permitisse entender um pouco mais a instituição onde eu estou, o Benjamin Constant. Entender um pouco mais, ali nos espaços outros, que não são na minha oficina, como é que essa distinção entre eficiência e deficiência vai sendo performada. Eu queria um antropólogo acompanhando a aula, por exemplo, de orientação e mobilidade. Que fizesse essa aula junto com as pessoas. Que é a aula que ensina a usar a bengala. Eu queria ter perna para acompanhar um pouco mais essa construção do que é ser eficiente e deficiente em outros espaços do Benjamin Constant. Eu não consegui fazer isso ainda, mas eu tinha vontade de ter um aluno de antropologia.

GIPS: A lei 11.126 garante que as pessoas com deficiência visual possam utilizar os cães-guia em todos os espaços públicos que circulam. Gostaríamos de saber se na prática, essa lei garante esses acessos e de que modo sua pesquisa está impactando essa realidade.

Márcia: Pois é. Eu acho que essas políticas, elas são necessárias, mas não são suficientes. Especificamente essa do cão-guia, o que a gente tem observado (...) é que a lei não está realizada, presente no nosso cotidiano. Ninguém sabe nem o que é o cão-guia. Eu já percebi... Que quando a gente usa a palavra para a pessoa: “Ah, é um cão-guia”, elas não entendem. Tem que dizer cachorro de cego. É assim que você tem que falar para as pessoas te entenderem. E as barreiras são inúmeras. São as mais variadas. As portas realmente são difíceis de serem abertas, sabe? No grupo de pesquisa a gente pensou numa estratégia que é a seguinte, pensando que as leis são necessárias, mas não são suficientes. É necessária uma ação situada, para que essa política possa de fato se efetivar. Então, especificamente no caso do cão-guia, a gente combinou no grupo que, cada um de nós, em cada lugar que vai, a gente anda com a lei na bolsa e distribui, fala com as pessoas. Com o maître, com o gerente: “Você conhece? Você já ouviu falar sobre isso?” Entrega a lei e faz uma política, um pouco (...) Localizada. Por que o que a gente tem discutido é que, sem essa coisa mais situada, de uma sensibilização mais pontual, a política não se efetiva. Definitivamente ela não se efetiva (...) É uma micropolítica. Tem uma dimensão aí que é uma micropolítica que precisa ser feita. E eu acho que o meu trabalho ele atua nesse sentido aí. Por que a lei, ela é necessária, mas não garante. De jeito nenhum. São muitas as situações em que as portas se fecham.

GIPS: Então poderíamos dizer que, na medida em que você vai produzindo um conhecimento, que você tem a intenção de transformar aquilo numa ação, em alguma coisa que possa ter algum desdobramento concreto, você considera que esta é uma forma de intervenção que surge a partir da produção de conhecimento?

Márcia: Eu acho que é uma forma de intervenção. Eu entendo o conhecimento como uma forma de intervenção. Não entendo de outro modo. Eu acho que se você chegou ao campo você já está intervindo e a pergunta deve ser: onde, para quê, qual é a política que estou produzindo aqui. Acho que essa pergunta a gente tem que fazer o tempo todo.

GIPS: Não, eu entendo, eu acho correto. Mas o que estamos entendendo que você está falando dando esse exemplo que você trouxe do cão-guia, para mim avança uma questão, que é você construir uma prática na vida cotidiana, com os alunos, fazendo uma micropolítica. Bom agora que nós entendemos essa questão aqui, nós estamos entendendo que existe esse buraco no campo social, que tipo de atitude a gente pode tomar? Então seria alguma coisa do nível prático. Também de trabalhar com os alunos essa ideia de uma intenção gerada a partir de uma questão específica (...) Achamos que isso tudo que está sendo colocado aqui é da maior importância, na medida em que muitas vezes a academia fica muito restrita aos seus próprios pares e coisas que a gente discute e produz de conhecimento, não transborda o âmbito da academia. Os pares acabam se lendo e a repercussão na vida, no campo das práticas sociais, ela fica ainda bastante incipiente. E eu acho que uma das importâncias do nosso trabalho é abrir espaço nesse diálogo para que ele repercuta de outra maneira, não só entre os muros da academia. De que maneira vamos devolver para aquelas pessoas aquilo que nós estamos produzindo de conhecimento na interlocução com elas. Como é que ela vai ter notícias disso. Quer dizer, quando estamos definindo o método, já incluímos essa pergunta no trabalho... De que modo você pensa essa devolutiva? 

Márcia: Ah, a gente discute muito isso. É uma questão. Nós pensamos demais sobre isso. E a gente tem trabalhado da seguinte maneira. A gente não faz uma devolução nesse sentido assim, agora é o momento da devolução. Como a gente está construindo essa ideia do que é pesquisar com o outro, o que é que esse COM inclui, como é que a gente faz na pesquisa efetivamente, a gente está entendendo que a devolução ela é também um dia a dia, a gente faz a devolução no cotidiano da pesquisa, no cotidiano do campo. É de uma semana para outra, tem a reunião do grupo, a gente discute, a gente conversa, mas a gente faz a devolução cotidianamente. Então para nós, a gente está entendendo que não faz muito sentido fazer uma devolução, organizar todo o material e apresentar o resultado da pesquisa para essas pessoas. A gente não faz isso. A gente vai apresentando, retomando o que a gente estava discutindo antes, talvez as conexões parciais que a gente fez a partir de um encontro para o outro. O que se passou aqui, o que é que aconteceu. O que é que a gente pode levar para discutir no grupo seguinte. E é assim que a gente entende o que é a devolução. Então a gente tem uma preocupação com isso, discutimos muito sobre isso, e entendemos que esse modo de trabalhar com a devolução está mais afinado com a metodologia que a gente vem desenvolvendo, pensando, discutindo, do que criar o momento devolução. A devolução está o tempo todo presente no campo. A gente discute isso, vai criando nas pessoas que estão envolvidas na pesquisa uma sensibilidade para lidar com isso. Acho que tem uma coisa aí que é de um exercício também, de um manejo do pesquisador que a gente tem que trabalhar, que tem que se discutir. E a gente trabalha isso no grupo, coletivamente. Por que assim, a gente entendeu essa coisa da devolução, a gente entendeu que se a gente separa muito, esse momento da devolução, nos parece um pouco artificial, entende? Ah, agora nos vamos organizar os resultados e agora nós vamos devolver os resultados para essas pessoas e aí, ora essa, se estamos fazendo uma pesquisa que é com o outro, apostando nos mal-entendidos, agora nós vamos deixar o sujeito lá como expectador e dizer assiste aí, que agora nós vamos mostrar os resultados? A gente não quer isso, entende? E a devolução é também pactuada ali com eles, né? Devolve, escuta alguma coisa. E é assim, um trabalhão, essa ideia de devolução. Mas isso tem sido tema de muitos e muitos encontros de pesquisa. Isso se traduz em coisas muito miúdas, por exemplo, pensar a organização do trabalho de corpo. Como eu venho fazendo essa parceria com a Angel tem toda uma questão lá que o trabalho de corpo tem que ser feito com silêncio, para você ter a consciência do seu corpo no espaço, não sei o quê. Aí eu falei que eles falam durante o trabalho, e aí de início era assim, eles tinham um trabalho de corpo e agora era o momento da fala. E as pessoas falavam sobre o trabalho de corpo. Mas aí a gente dizia, não, mas espera aí, porque é que a gente está separando esses dois momentos? Eles só podem falar depois que fazem o trabalho de corpo?Então tem uma fala que é situada, que é colada junto com a experiência de corpo, e naquele momento, naquela troca ali, que alguma devolução vai acontecendo. E é claro que pode ser de uma semana para outra, né? Porque o pesquisador vai lá para o campo, acontece alguma coisa, ele traz para o grupo, reflete e isso volta de alguma maneia no encontro seguinte. Mas isso tem sido tema de reflexão assim, entre nós. Mudamos a dinâmica de encontro lá efetivamente com eles, sabe? Mudamos como a gente organiza o trabalho por conta disso... (...) É interessante. A gente tem no momento, uma discussão que está quente, que é a partir da leitura do Coutinho, que a gente leu lá no livro e que está movendo o grupo no momento é o seguinte. Tem a ver com o que você está falando porque como eu disse, a gente planeja a oficina de uma semana para a outra, de um encontro para o outro, sempre com essa ideia de que a gente vai seguindo pelas pistas que o campo apresenta. Então, qual foi a questão que apareceu nessa oficina e a gente pode levar para a outra e assim por diante. Até que teve uma aluna especificamente que começou a dizer que, mas olha, o fato de a gente planejar de um encontro para o outro, também nos amarra muito porque a gente vai para o campo com esse planejamento, às vezes planejamentos enormes e não dá tempo de fazer aquilo tudo e dá uma angústia de terminar a oficina. E aí ela começou a colocar a seguinte pergunta: esse pesquisar COM, esse COM inclui o quê? Ele tem incluir certamente o planejamento. É claro que tem que incluir o planejamento, mas tem que incluir uma dimensão de improviso, de acaso, de manejo da situação, que a gente precisa estar aberto para isso, ter uma disponibilidade para isso, porque senão, a gente volta a estar de novo amarrado num planejamento. Ainda que ele seja feito no cotidiano, ainda que ele seja feito de um encontro para o outro. Então, qual é o limite disso daí? E aí nós estamos discutindo isso nesse momento. Até onde a gente vai com esse planejamento, até onde a gente vai com as transgressões a esse planejamento, mas discutindo o que é que está incluído nesse COM. Esse COM abarca o quê? Tem que abarcar o pesquisador, esse manejo que ele faz, abarcar os acasos. O que é que está incluído aí? Acho que o que a gente está discutindo é isso.

GIPS: O que é que esses estudos ajudam a pensar a subjetividade e próprio lugar das ciências humanas? Faz sentido, de acordo com esses referenciais teóricos, falar em ciências humanas?

Márcia: Ah, eu acho que faz sentido. Eu não falo sempre ciências humanas, eu não falo isso sempre, mas acho que de vez em quando faz sentido. Quando eu discuto com o Comitê de Ética faz sentido dizer que eu sou das ciências humanas e em que modelo de pesquisa me cabe. Mas eu acho que faz sentido para a Psicologia. Porque é como eu disse antes, me faz pensar uma Psicologia que é interessante assim, uma Psicologia viva, que aposta nessa ideia de construção com o outro de alguma coisa, de um mundo que pode ser partilhado, você constrói efetivamente com o outro assim. E esse referencial me ajuda a fazer isso. Eu acho bom fazer isso na Psicologia, entende? Eu costumo dizer que eu me formei em Psicologia, lá no final dos anos 80 e saí revoltada, não queria aquela Psicologia, achava careta. Psicologia que só fala da adaptação, só fala da norma. E eu fui me tornando psicóloga ao longo dos anos, entendeu? Com o Mestrado, o Doutorado, com a pesquisa de campo, ao longo dos anos. Hoje eu posso dizer alegremente, eu sou psicóloga! Porque há Psicologia bacana a ser feita por aí, tem muita Psicologia interessante. Mas a gente tem que apostar nisso e criar referenciais para que ela ganhe o mundo assim. Entende? Então eu acho que esses autores me ajudam nisso. A pensar essa Psicologia interessante.


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